DESTRUIÇÃO DA RESTAURAÇÃO.

Versão remodelada e amplada do texto original.

 

Restaurar? Ofício divino nas mãos de pouquíssimos felizardos, ou melhor dizendo, abençoados. Depende de quem o faz e, são poucos os que realmente tem a concepção exata do que significa isso.

Destruir, modificar, descaracterizar, isso qualquer um faz, até mesmo os bem intencionados que acreditam que isso também é uma forma de restauração.

Existe hoje uma confusão imensa sobre o uso inconseqüente e indevido do termo restauração. Não meus amigos, o que vemos hoje em dia como sinônimos de restauração não passa, na verdade, de uma destruição e desrespeito ao patrimônio seja ele qual for.

Veja bem, não quero dizer que o trabalho dos falsos ou pseudos restauradores não é bom, somente deixar claro o abismo que existe entre o trabalho de um restaurador e o de um destruidor – seria este o termo mais preciso! – mesmo que não, o adotarei a partir daqui.

O termo restauração tem a ver com a ação de recuperação, de trazer de volta o original, revitalizar, reconstruir e reconstituir elementos destruídos utilizando-se das mesmas técnicas e materiais do original sempre que possível e disponível. O cuidado com cada contorno entalhado, cada rebite corroído, amassados em metais, trincos em vidros, tecido repuxado, desbotado, a perfeita e saudável visualização dos veios da madeira e assim por diante. A busca da mesma madeira, a composição da mesma liga metálica, do mesmo verniz ou laca… Tudo é levado muito a sério pra ser rebaixado ou igualado ao trabalho de um modificador.

Quando você tem em mãos um móvel “velho” – é estou falando daquela herança da vovó, que os herdou de sua bisavó e sabe-se lá onde esse trajeto teve início – muitas vezes não se dá conta do valor que este objeto pode ter. Não digo apenas do sentimental ou histórico para a sua família, mas também de um valor real, material, palpável e de um outro ainda que agrega valor: o histórico, de estilo, do período, do artesão que o confeccionou, dos salões por onde já esteve, da história fora da sua família, aquela que é a história da humanidade em algum determinado momento, reflete a realidade social da época.

Este aparador italiano (+- 1400) é um típico exemplar de restauração consciente. Durante todo o processo de restauração desta peça (que pude acompanhar) foram realizadas analises dos vernizes utilizados originalmente, as partes danificadas foram corrigidas utilizando-se as próprias partes, os mármores (extintos) devidamente soldados com materiais específicos. A única parte nova é o espelho pois o original estava quebrado e não permitia restauro. Mesmo assim, foi utilizado um de cristal, conforme o original.

É como uma obra de arte e deve ser respeitado como tal. Cada curva, friso, ângulo, elemento faz parte de um conjunto de coisas que caracterizam o móvel em um determinado estilo e período da história, que compõem a sua harmonia, perfeição. Assim como as técnicas das pinceladas, pigmentos, tecidos utilizados numa tela. Seria tragicômico ver um Botticelli restaurado tendo sido usado tinta acrílica para repor as falhas do tempo. Meu Deus, isso seria caso de internação tanto da proprietária que permitiu quanto da autora do desastre. Da mesma forma que acontece com os móveis.

W. Benjamin define muito bem em seus escritos o que vem a ser a áura de uma obra de arte. Porém ele trata sobre questões técnicas de reproduções de obras de arte. Aquele caso da Monalisa e tantas outras obras que existem às milhares espalhadas nas casas por aí. Esta aura, no caso específico da restauração, pode ser interpretada como o todo citado no parágrafo anterior, seria algo como a vida pulsante da peça a ser restaurada:

“O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico. Como este próprio testemunho baseia-se naquela duração, na hipótese da reprodução, onde o primeiro elemento (duração) escapa aos homens, o segundo – o testemunho histórico da coisa – fica identicamente abalado. Nada demais certamente, mas o que fica assim abalado é a própria autoridade da coisa.” (BENJAMIN, 1980, P.08)

Depois que enfiaram a ditadura das pátinas, decapês e outras técnicas, as revistas entupidas de ambientes recheados de móveis com estas aplicações a impressão é que, até mesmo os profissionais de decoração, interiores e arquitetos perderam a noção do absurdo, do ridículo e do bom senso. Eu cansei de ver – e vejo até hoje – “profissionais” indicando uma patinazinha sobre aquele divano Luis XVI, pasmem, ORIGINAL (!!!!!!) como vi ainda há pouco num fórum de dicas de decoração. E é impressionante que não apenas uma profissional, mas vários, indicaram inúmeras técnicas para uma senhora que recebeu de herança móveis da bisavó que vieram mais de trás ainda. Será que realmente perderam a noção de bom senso ou nunca a tiveram?

Percebam o horror desta peça onde a madeira desapareceu por completo. Toda a textura e volume da peça foi trocado por um visual chapado em um dourado que remete a um falso luxo. Isso se também não levarmos em consideração a troca do tampo (provavelmente um mármore) por este outro.

Por favor gente, quando vocês tiverem em mãos algum objeto antigo, antes de qualquer coisa, questione seu cliente sobre a origem daquilo, a história na família, origens. Caso seja difícil, nada que um bom antiqüer não resolva com uma visita ou até mesmo uma busca pelo Google. Depois disso feito, aí sim tome a decisão sobre o que fazer com aquilo. Mas tenha bom senso, por favor. Não destrua um patrimônio.

Caso seu cliente esteja infectado pelas idéias mirabolantes dos modismos, estude em casa para conseguir traze-lo à realidade e mostrar a ele o valor daquilo. É bem melhor convencê-lo a vender a peça para um antiquário que mandar jogar uma camada de tinta sobre. Veja bem, com o dinheiro que ele ganhará pela peça, certamente vai conseguir mandar fazer uma cópia em madeira menos nobre onde, aí sim, você pode mandar jogar o que quiser em cima sem peso na consciência e sem agredir a história.

A diferença a que me refiro entre os dois profissionais é exatamente esta. Um restaurador cuida do objeto como se fosse um recém nascido. Cerca-o de todo cuidado e trata-o com todo o respeito que ele merece. Pesquisa profundamente inclusive as técnicas construtivas e materiais empregados na época para não incorrer em erros, para não danificar a peça e se danificar acidentalmente, sabe exatamente como reconstruí-la sem descaracterizá-la.

Um destruidor trabalha cegamente na contramão da história. Não leva em consideração absolutamente nada a não ser o quanto ganhará pelo serviço prestado. Ele não consegue ver na sua frente nada mais que uns pedaços de madeira velha. Pode até observar:

– Noooooooossa mas que cadeira lindaaaaaaaaaaaa!

Porém isso não vai passar de mise en scène… Uma tentativa de ganhar o cliente, massageando o seu ego. Mas logo em seguida ele continuará com a sua ânsia destrutiva:

– Um decapê em tons verde forrado com um shantung caramelo vai ficar bárbaroooooo!!!!!

O detalhe não observado na cena acima é que a cadeira em questão é na verdade uma poltrona do estilo Diretório, original. Ai… Este profissional não leva em consideração absolutamente nada, não sabe de nada. Não se importa se a madeira é rara ou já extinta, os frisos suaves e entalhes delicados, as marchetarias e desenhos. Simplesmente vem com suas latas de tintas e preparados pastosos e lança camadas e mais camadas umas sobre as outras, formando aquela massa de quibe que depois de ter imprimido as cerdas do pincel ainda recebe o delicado tratamento das lixas abrasivas que darão o toque final e ele poderá dizer:

– Aiiiiiiiiiiiiiiii!!!! Que luxooooooooooooooooo!!!!!

Desculpem-me, mas isso pra mim é uma cena digna de caracterizar o pior dos infernos de Dante e o dito cujo, o pior dos demônios. É grotesco, pavoroso, insano. Se quiserem suavizar um pouco tudo bem, uma cena digna daqueles enlatados do cinema pastelão onde tudo, por mais ridículo e absurdo que seja, se torna engraçado e consequentemente, aceito.

Para este tipo de coisa seja coerente como eu já escrevi acima. Caso o cliente deseje uma peça de estilo modificada em seu ambiente, não o leve a antiquários nem a lojas de móveis usados para não correr o risco de destruir um pedaço da nossa história. Hoje algumas fábricas fazem cópias exatas de qualquer móvel. Basta apresentar uma foto e, seja ele de que período da história for, eles pesquisam e você o recebe pronto para enviá-lo ao profissional que, aí sim, deixará de ser um destruidor e passará a ser um artista.

Eu não poderia, como amante das artes, deixar de externar a minha indignação e preocupação com este assunto e as conseqüências observadas por aí no dia a dia profissional.

Bem meus amigos, este assunto vai longe, provoca divergências e discussões acaloradas. Alguns se sentirão ofendidos e outros aliviados. Outros conseguirão entender a diferença entre os trabalhos e profissionais e outros conseguirão se manter insensíveis ao tema. Se eu consegui atingir você hoje com este texto, fazendo-o parar e analisar as situações, ou até simplesmente rir com algumas colocações, já está valendo. Já alcancei meu objetivo e minha função como educador e amante das artes.

LD&DA Paulo Oliveira

 

19 comentários sobre “DESTRUIÇÃO DA RESTAURAÇÃO.

  1. Olá Caro Paulo

    Estava passando a vista pelo Google catando assuntos sobre decoração e eis que me vejo navegando pelo teu Blog encantada com tuas idéias sobre restaurar. Também tenho a tua visão sobre preservar a originalidade de peças que são verdadeiras obras de arte e fico triste, quando vejo pessoas sem noção alguma, destruirem peças de grande valor histórico! Moro em Belém no Estado do Pará e na minha casa mesmo possuo móveis antigos das minhas gerações passada, trazidos pelo meu bisavô quando deixou portugal pra morar nos confins do Brasil, na época em que a borracha era ouro por aqui. Posso te dizer que ainda neste século na minha histórica Belém, possuímos antiquários com peças antigas de rara beleza e sempre que posso, adquiro uma ou outra num preço convidativo, que não faz jus ao valor que possuem.

    Atenciosamente,

    • Claudia,
      sorte de vocês que por aí ainda se preservam as peças, a história. Infelizmente não é mais o “normal” no mercado.
      Qualquer dia vou conhecer o Pará e todo o cuidado que sei que as pessoas tem em manter e preservar as suas raízes. E claro, vou mostrar isso aqui no blog como exemplo ok?
      abs

  2. Concordo com a palavra destrução. Acontece muito;Porém uso a palavra renovação.Aí vem o comentário que fala sobre revistas em que fazem o cliente se apresentar com idéias fixas sobre um trabalho. Ai convencer a deixar original é uma arte para o restaurador;De onde concluo que de fato o problema existe e é cultural principalmente.
    Conto sempre com os educadores que devem sempre restaurar a educação e a cultura.
    ESSES SÃO OS VERDADEIROS RESTAURADORES.

  3. Paulo ter te achado foi para mim um presente.Amo a idéia de restaurar,reutilizar,enfim tudo que possa ajudar a diminuir esse consumo desnecessário e sem freio das pessoas.
    Moro em São Bernardo do Campo e não tive oportunidade de fazer artes plástica, mas como amo reciclagem gostaria de saber se você conhece algum curso de restauração que possa me indicar como sendo sério ,buscando sempre ao máximo preservar a originalidade da peça,ou alguém que queira me ensinar como estágiaria.Tenho muita vontade atuar nessa área se puder me dá uma forcinha te agradeço.
    Um beijo e sucesso sempre. Deus te capacite mais e mais.
    ROSELI NASCIMENTO.

  4. O purismo não existe. Materiais, técnicas e ferramentas perdem-se no tempo. O importante é que a intervenção seja a menor possível, a mais fiel possível e, acima de tudo, a mais reversível possível.
    Ainda assim, a consciência da preservação do que ainda resta no original deve estar presente. Ainda que seja para não atrapalhar o caminho de alguém com maiores conhecimentos e melhor habilidade que a gente.
    Parabéns.

  5. Boa noite ,encontrar vcs foi um verdadeiro achado ,esse texto sobre restauçao e divino ,a abertura entao dizendo que quem restaura sao verdaeiros abencoados sao animadores ,os comentarios exemplificados so fizeram confirmar minhas suspeitas .Amo antiguidades ,ja tentei me livrar desse sentimento mas nao consigo ,e algo mais forte que eu ,e uma curiosidade e comum eu achar antiguidades no lixo ,ja me disseram que e magnetismo ,faço os devidos reparos e vendo as peças .
    Um grande beijo espero receber dicas e orintaçoes de vcs.

  6. Ólá Paulo,
    Acho muito importante levantar questões como esta, que mostram a diferença entre o profissional e a pessoa (que mesmo que tenha boas intenções) que não tem conhecimento e técnica para exercer uma função.
    Infelizmente pela restauração não ser uma profissão legalizada costuma ser bem comum encontrar pessoas leigas no assunto se passando por restauradores. E por desconhecimento, muitas pessoas que possuem objetos de arte antigos e valiosos acabam se prejudifando as vezes de forma irreversível.
    Tenho uma empresa de restauração, trabalhamos com peças e prédios tombados pelo Patrimônio e procuramos sempre divulgar a importância da preservação de nossos bens históricos, artísticos e culturais.
    Mas gostaria de acrescentar ao seu texto, que mesmo com a pesquisa e conhecimento dos materias originais, nem toda intervenção precisa ser feita com o mesmo tipo de material.
    É preciso levar em conta diversos fatores para a escolha do processo de intervenção e isso varia muito a cada peça.
    Os materiais e processos devem ser reversíveis e as reintegrações devem se limitar as áreas de perda.
    Foram desenvlvidos muitos materiais nessa área. Resinas e vernizes que não são iguais aos originais, mas que dão mais durabilidade a pintura e que podem ser removidos quando nescessário.
    É importante que tenhamos conhecimento disso, para que não façamos uma interpretação errada do trabalho de muitos profissionais desa área.
    As ilustrações que usou em seu texto mostram erros e acertos fáceis de serem percebidos. Mas podemos observar uma antiga intervenção numa pintura em que a tinta usada possa estar oxidada e achar erroneamente que o trabalho foi mal executado.
    Por questões éticas é necessário sempre buscar uma orientação profissional, antes de qualquer julgamento.
    Gostei da sua orientação e de levantar atenção para um assunto tão relevante.
    Parabéns
    Ana Frazão

  7. Pois é Elisa, esta também é a nossa dificuldade quando lidamos com clientes, especialmente aqueles leitores assíduos de revistas de decoração. Nada contra as revistas, mas que por vezes eles pisam na bola sobre este assunto, pisam mesmo. Isto tem muito a ver com os profissionais que “ditam as normas, tendências e regras” do mercado e que, digase de passagem, raramente sigo. Antes da tendência ou da moda, temos de ver a personalidade do cliente.
    Com relação ao trabalho com móveis creio que o problema seja o mesmo que o seu: questões financeiras. Restaurar realmente não é barato ainda mais tratando-se de uma peça de estilo. E são poucos os profissionais que realmente são restauradores. Por vezes o cliente até tem consciência disso, mas opta por uma solução mais barata (pátina, decapê, etc) e o profissional, entra na onda e passa até mesmo a incentivar esta ação criminosa. Da mesma forma, falta embasamento, argumentação, princípios.
    Sempre converso muito com meus clientes, alunos e colegas sobre este assunto pois creio que uma camada de tinta nao pode ter o poder de embaçar ou destruir a história.
    Já vi cenas onde a pessoa mandou jogar uma patina sobre uma cama e depois arrependeu-se e mandou tirar. Porém, a cama nunca mais voltará a ser o que era quando original.
    Mas vamos em frente nessa luta em favor do patrimônio historico particular de nossos clientes. Mesmo que aos trancos e barrancos. rsrs

  8. Paulo, hoje quando cheguei a universidade, lembrando ainda daquela imagem, me toquei que vocês são designer. Vou me situar profissionalmente, sou professora de artes, pedagoga e restauradora. Ensino encadernação com princípios de preservação. Amo ensinar e restaurar. Sempre estive entre esses duas profissões e para não ficar em conflito, associei as duas, ensino artes, história e preservação.
    Agora vamos a discussão. Ensinar a encadernar um livro é fácil, seja qual for à técnica francesa, inglesa, com costura, sem costura, com couro pleno, etc.; difícil é conscientizar o aluno da importância de preservar a originalidade da obra. Se o cliente pede para fazer algo barato, ele faz para não perder o cliente. Queria eu ter o poder de ensinar para o inconsciente das pessoas. Assim eu teria a certeza de que ao saírem do curso não estariam colocando a questão financeira acima dos princípios. Eu prefiro colocar os meus princípios na cabeça dos meus clientes e não o contrário. quando se tem consciência daquilo que se quer a gente consegue.

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  12. Transferido comentário:

    Regina Celia Tesolin Roberto Disse:
    Março 18, 2008 at 10:31 pm e

    Caro colega. Eu fiz um curso de alguns meses de restauração de móveis e aprendi algumas técnicas de pátinas e afins para vários móveis. E aprendi tambémque quando se trata de um móvel antigo, devemos ter muito cuidado em sua restauração procurando conservar sua originalidade, pois, restaurar è conservar as características originais da peça. Mas por incrível que pareça existem pessoas que adoram destruir e fazer pátinas e pátinas, ou então outros serviços do fim do mundo. Eu mesmo faço algumas coisas p/ mim, mas sem comprometer a peça. Aqui em minha cidade existe alguns “restauradores” que fazem coisas que se eu te contar você vai chorar com certeza. Sei de pessoas que venderam guarda-roupa com mais ou menos 100 anos de história por um preço irrisório para loja de móveis usados, que com certeza, irá vende-lo por um preço um pouco melhor, mas que, não chega nem perto de seu valor real. Enfim gostaria de dizer que adorei a sua matéria e precisaria haver mais consciência por parte dos profissionais dessa área e mais divulgação desse tipo, pois existe profissionais que não conseguem diferenciar um móvel antigo de ua cópia de MDF.

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