Novos paradigmas, ou, os nichos negligenciados.

Esta série de artigos que publico atualmente nasceu de minha palestra “Design de Interiores e Ambientes: N Jeitos de Atuar” e as constantes solicitações de maiores explicações sobre alguns aspectos mencionados na mesma e que, por falta de tempo na palestra, acabam ficando algumas pontas soltas. Então, a intenção desta série é exatamente esta: complementar e ampliar o conteúdo da palestra. Mas antes de dar prosseguimento, faz-se necessário elencar alguns aspectos de relevância para o melhor entendimento do conteúdo aqui expresso.

Causa certa estranheza a forma como as Instituições de Ensino Superior (doravante apenas IES) e as Instituições de Ensino Técnico (doravante apenas IET) abordam a área de Design de Interiores e Ambientes. Há uma falha imensa nas matrizes curriculares bem como nos ementários das disciplinas com relação às possibilidades de atuação profissional ficando, portanto, bastante distantes da realidade do mercado. Outro fator importante a destacar é que os acadêmicos não devem ser treinados para seguir um padrão projetual, ou conjunto de procedimentos pré-determinado, já que vivemos numa constante evolução em todos os aspectos tangenciais ao projeto: tipos e usos de espaços, materiais, tecnologias, entre outros.

Antes de tudo, faz-se necessário entender o que significa esta palavra “Design” que antecede o nome de nossa profissão, um detalhe que trataremos mais adiante em outro artigo. Mas, mesmo sem este conhecimento prévio, não nos impede de pensar sobre a abrangência de nossa área.

Como um campo “multidisciplinar” – prefiro dizer que é transdisciplinar – o Design de Interiores e Ambientes é uma profissão que, por suas características específicas aliadas aquelas oriundas de nossa raiz, o Design, não podem ser limitadas por barreiras supostamente definidas por sua nomenclatura, bem como não deve ser amarrada a qualquer outra área profissional (EX. o elemento arquitetônico) à exceção de sua origem: o Design.

O projetista não deve comportar-se como um motorista de taxi: “Diga-me exatamente aonde você quer chegar e me pague que eu te deixarei no destino.” (Phillips, 2008).

Durante a formação acadêmica, é praticamente imperante o direcionamento para trabalhos voltados apenas ao elemento arquitetônico. Poucas são as IES que conseguiram livrar-se do erro acadêmico de confundir a área com a Arquitetura ou a Decoração e hoje oferecem cursos de alto nível e com uma vasta abrangência de possibilidades de atuação profissional que vão muito além dos projetos residenciais ou comerciais. Aliás, existem diferentes tipologias de espaços residenciais, bem como de comerciais. Mas não somente estes tipos existem.

Jenny Gibbs[1] lembra que

Durante muitos anos, o Design de Interiores confundiu-se com a Arquitetura, ficando, muitas vezes, encoberto. Distinções mais claras entre essas duas profissões tão relacionadas entre si estão começando a se formar atualmente e, uma vez estabelecidas de forma definitiva, será mais fácil definir o Design de Interiores como uma profissão respeitada, ética, com valores, missão e objetivos claros. De forma geral, a profissão estará em melhor posição para abordar questões importantes relacionadas com a ideologia do Design, estilo de vida, segurança, conforto e comportamento humano, e estimular os aspectos sensoriais e perceptivos do Design de Interiores, além da função e ergonomia”.

O ato de projetar sempre esteve ligado ao intelecto: arte, ciência e filosofia afinal, projetar envolve um esforço mental sofisticado: lidamos com diversas ideias (vagas e precisas), informações (criatividade e cálculos), problemas (objetivos, subjetivos), materiais (físicos e sensoriais), processos industriais e construtivos, psicologia e percepção humana entre outras variáveis (pensamento sistemático e caótico), onde temos de ordena-las de forma coerente a fim de concretizar as soluções através do projeto. E assim deve permanecer, sempre em expansão acompanhando a evolução da humanidade e, principalmente, da sociedade.

Não podemos permitir sermos transformados em robôs automatizados que seguem padrões pré-definidos eliminando de nosso labor o pensar[2]. Esta falha tem a sua base no movimento modernista da Arquitetura que pregava, sutilmente, o fim da história do projeto[3]. Apesar da sutileza, este pensamento influenciou profundamente a academia, até os dias atuais. Com isso surgiu a ideia dos laboratórios onde os alunos poderiam “pôr a mão na massa”. Não podemos discordar desta prática, porém vemos que o trabalho artesanal e visual acaba tomando quase que a totalidade do tempo do processo. Normalmente transformam-se em um parque de diversões distante da realidade, deixando de lado o pensar, a reflexão, a pesquisa, a análise das realidades e outros elementos fundamentais ao processo para a obtenção de projetos, produtos e até mesmo soluções com melhor qualidade e, até mesmo, inovadores.

Quando o aluno se forma numa graduação ou num curso técnico, são recorrentes as dúvidas:

– “E agora? O que devo fazer? Por onde devo começar? Qual caminho devo seguir?”

Isso reflete a fraca oferta de conhecimento e entendimento dentro da academia brasileira bem como o desconhecimento, por parte desta mesma academia, da abrangência possível do Design de Interiores e Ambientes.

Vale ressaltar aqui, que as IES que já adotaram o termo “Ambientes” como nome de seus cursos são aquelas que melhor conseguiram entender e derrubar as muralhas impostas sobre a nossa área visando meramente o cerceamento profissional, bem como permitiram que o Design assumisse o comando curricular ao contrário de outras que ainda insistem em manter as Artes Decorativas ou a Arquitetura direcionando as matrizes curriculares.

Durante os cursos atuais, salvo raras exceções, o foco é sempre: projeto residencial ou projeto comercial. Quando se fala em residencial normalmente estudam-se projetos do tipo “capa de revista[4]” e, quando são comerciais, o foco normalmente são lojas, esquecendo-se de todo o resto do mercado. Ficam de fora as possibilidades diversas de outros segmentos e especialidades que os profissionais desta área podem atuar tranquilamente dada a sua formação complexa e holística[5]. Embora pareça que a Arquitetura e o Design de Interiores/Ambientes – lembrando que somos designers – sejam “íntimas”, ao analisarmos o processo do desenvolvimento dos projetos percebemos que existe pouco contato real entre as áreas. Na verdade resume-se, quando é o caso, ao elemento arquitetônico, ou edificação.

É preciso ressaltar aqui que sombreamento ou suposta invasão de mercados alegados por aqueles que levantam a bandeira do “direito adquirido” não pode significar exclusividade de atribuições ou de reserva de mercado – o que é crime segundo o Código Civil Brasileiro e a Constituição Federal – deixando clara, meramente, as disputas mercadológicas e interesses financeiros.

Portanto, ante qualquer dúvida sobre exercício ilegal de profissões, atribuições profissionais, exclusão profissional e outras situações constrangedoras e segregadoras, deve-se buscar as bases nos currículos acadêmicos. Caso as Leis brasileiras sejam insuficientes, pode-se utilizar como exemplos as formações e atribuições profissionais empregadas no exterior para mostrar como a área vem sendo prejudicada aqui no Brasil em sua liberdade criativa, baseada apenas em interesses tácitos de outras categorias.

Bryan Lawson[6] diz que

Até certo ponto, podemos considerar genérica a atividade de projetar, mas, ainda assim, parece haver diferenças reais entre os produtos finais criados por projetistas de vários campos, assim, uma das perguntas presentes no livro todo será até que ponto os projetistas tem processos em comum e até que ponto esses processos variam de um campo a outro e entre indivíduos.

Uma das questões latentes nesse sentido é: como superar isso e mostrar à sociedade (governos, academia, profissionais e comunidade) o que é e até onde podemos contribuir na construção de um País melhor, seja no âmbito ambiental, cultural, estrutural, econômico e social.

O designer de interiores pode fazer as pessoas pensarem, desafiarem convenções sociais e até questões políticas, destacando temas como o desperdício, quando há pessoas com carências básicas, ou o consumo desmedido em um mundo onde os recursos naturais estão se esgotando rapidamente.” (GIBBS, 2010).

Voltando ao questionamento do egresso citado acima, a dica é: especialize-se. Durante o curso você tem contato com diversos conhecimentos e certamente terá mais afinidade com algum ou alguns. Geralmente é aquela disciplina que você tem maior facilidade e geralmente faz os trabalhos acadêmicos com gosto. Passe a analisar o que e até onde essa especialidade pode te levar, quais as possibilidades de especialização e pós-graduação que a mesma proporciona e também qual a demanda do mercado sobre este nicho específico. Pode ser também aquela disciplina que você pouco ouviu falar antes do curso e que te arrebatou, maravilhou, encantou.

Lembre-se sempre que não podemos focar apenas no efeito (estética) que pretendemos obter e que devemos saber e dominar o processo (identificação e solução de problemas, função, etc.) para alcança-lo. Projetar exige muito mais que bom gosto ou bom senso estético. É impossível pensar no produto final sem passar pela fase projetual.

Desta forma você poderá encontrar um nicho de mercado bem específico (disciplina única) ou um pouco mais abrangente (mistura de alguns conhecimentos). Porém vale o alerta: não tente abraçar o mundo pensando que pode fazer tudo sozinho. Precisamos aprender a lidar com as parcerias profissionais, trabalhar em projetos de coautoria.

A partir do momento que os profissionais de Design de Interiores e Ambientes perceberem isso, passarão a trabalhar em equipes multidisciplinares (ou multiprofissionais). São estas equipes, formadas por profissionais especialistas em diversos segmentos relacionados ao projeto global, que encontrarão as melhores soluções para os problemas do projeto.

Podem questionar: mas o mercado está inchado. Como então vamos lucrar tendo que dividir o lucro do projeto entre diversas pessoas?

Simples. Tudo começa pequeno e com o tempo e o mérito vai crescendo, ganhando credibilidade e valor. A qualidade agregada e percebida pelo mercado no resultado final dos projetos é o grande diferencial que fará o grupo ter sucesso e, consequentemente, o reconhecimento e destaque pelo mercado da marca, possibilitando assim, um valor de projeto maior.

Para que estas equipes funcionem e frutifiquem é fundamental que, além de designers, façam parte das mesmas profissionais de outras áreas como, por exemplo, engenharia civil e eletricista (para cuidar da parte estrutural e elétricas dos projetos sempre que necessário). Pode-se contar também com arquitetos na equipe, desde que estes sejam conscientes da abrangência e complexidade do Design e qual é o papel de cada integrante desta equipe.

Ser especializado dentro de uma equipe multidisciplinar não significa que você irá atuar apenas dentro de sua especialidade afinal, o seu conhecimento não se restringe à sua especialidade. Para que uma equipe desta funcione realmente, temos de ter consciência de que ali dentro ninguém manda, ou melhor, todos mandam. É como um relógio com suas engrenagens: uma depende da outra. Cada uma ajuda a outra a cumprir o seu papel. Portanto, nada impede que quando o responsável pelo paisagismo estiver projetando e você passar ao lado e perceber algo no projeto e tiver uma ideia diferente do que está vendo, tenha a liberdade de apontar e propor a ideia assim como, quando você estiver desenvolvendo a sua parte, deve aceitar e considerar as opiniões dos outros integrantes da equipe.

Todos estes questionamentos levam claramente às seguintes constatações:

Se somos capacitados tecnicamente para projetar interiores comerciais (mobiliários, revestimentos, iluminação, etc) garantindo a segurança de todos os usuários (funcionários e clientes), porque não podemos projetar um ambiente externo?

Se projetamos banheiros complexos, com hidro e diversos outros equipamentos, porque não podemos projetar ambientes como os spas em espaços externos à edificação, mesmo que em varandas?

Se somos capacitados tecnicamente para projetar um banco para usuários no interior de uma residência ou ambiente comercial, porque não podemos cria-lo como mobiliário urbano ou para um shopping?

Qual a diferença?

Nosso trabalho tem uma profunda ligação com o campo das idéias e a criatividade. Vale lembrar que,

A criatividade em Design só tem valor quando gera conceitos que resolvam o problema proposto. Isso começa pela compreensão e escolha da abordagem adequada em cada caso específico. Além disso, muitos problemas relacionados ao projeto são tratados apenas quando surgem. Essa abordagem emergencial dos problemas pode levar ao aumento dos custos e dilatação dos prazos.[7]

Como pretendo deixar claro nesta série de artigos, ao apresentar as diversas possibilidades de atuação destes profissionais, percebe-se que o termo “Interiores” não deve ser utilizado como jaula visando o cerceamento do exercício profissional e que o nosso conhecimento adquirido na academia extrapola qualquer barreira imposta pelo mesmo (EX. entre quatro paredes e/ou apenas ambientes internos da edificação). Devemos, portanto, reconhecer como verdadeiro e passar a adotar o título Design de Ambientes.

Exposto isso tudo, precisamos reconhecer os nichos de mercado específicos – alguns trabalhados em algumas universidades e outros negligenciados pela maioria – como forma de apontar novos horizontes para o Design de Interiores e Ambientes brasileiro.

.

——————————————————————————————————————————————-

[1] GIBBS, Jenny. Design de Interiores: Guia útil para estudantes e profissionais. Ed, Gustavo Gili, 2010.

[2] Segundo o Dicionário Michaellis, pensar significa: “(lat pensare, freq de pendere) vint 1 Combinar ideias, formar pensamentos. vti 2 Meditar, refletir em. vint 3 Ser de tal ou qual parecer. vtd e vti 4 Ter na mente; lembrar-se. vtd 5 Julgar, supor. vint 6 Raciocinar. vti 7 Fazer tensão. vtd 8 Delinear mentalmente; meditar, planejar. vti 9 Estar preocupado, ter cuidado.”

[3] LAWSON, Brian. Como arquitetos e designers pensam. Ed. Oficina de Textos, 2011.

[4] Apartamentos ou residências enormes, de clientes ricos e distantes da realidade normal do mercado. Até mesmo os orçamentos propostos são fora da realidade de mais de 90% dos clientes disponíveis.

[5] Segundo Jenny Gibbs (2010), “O termo holístico costuma ser muito utilizado para designar projetos de interiores que consideram os sentidos humanos. No entanto, um projeto de interiores realmente holístico é aquele que considera todos os produtos especificados desde a sua compra e produção até o seu descarte, certificando-se de sua qualidade estética e funcional”.

[6] LAWSON, Brian. Como arquitetos e designers pensam. Ed. Oficina de Textos, 2011.

[7] PHILLIPS, Peter L. Briefing: A Gestão do Projeto de Design. Ed, Blucher, 2008.

Expressão ou Impressão? De quem é a razão?

por Valmir Perez

Arte – palavra de significado controverso que sugere inúmeras polêmicas e discussões. Para uns, a arte é a aptidão de aplicar habilidades e conhecimentos na materialização de idéias. Para outros, apenas uma atividade do espírito humano sem sentido prático, ou ainda o conjunto de técnicas, regras e preceitos para a realização de uma atividade criativa.

O que significa esse termo para nós humanos que o utilizamos nas mais variadas atividades quando queremos exprimir, por exemplo, níveis e estados tecnológicos, tais como quando dizemos que o estado da arte dos aparelhos e equipamentos de cirurgia intra-uterina ainda não permitem determinadas intervenções? Ou quando dizemos que fulano de tal é um artista no que faz, ou que tal automóvel, equipamento, etc. são uma obra de arte? Nesses casos, não estamos subjetivamente sugerindo que a arte é a culminância da ciência e da técnica em determinada área do conhecimento?

Pois, se é assim, se essa palavrinha de quatro letras significa tudo isso, não seria então óbvio supor que seu estudo se fizesse necessário desde a infância? Que se aprendêssemos suas nuances, seus mistérios e suas técnicas desde a tenra idade não estaríamos mais preparados para enfrentar o mundo, uma profissão, uma carreira? Não seríamos mais livres no pensar e no agir?

E por que o estudo das artes na maioria das escolas brasileiras, sejam elas públicas ou particulares, é tão tímido, tão sem sal? Será que ainda não nos demos conta da importância da velha e sempre nova arte? Pois se grande parte da nossa evolução como seres humanos depende de como nossos sentidos visuais, táteis, auditivos, etc. apreendem o mundo, não estaria faltando alguma coisa em nossa educação? Em nossa formação?

A arte, para os artistas da luz

E para nós, que somos artistas da luz, o que significa essa palavra, esse conceito, essa coisa meio indefinida que preenche nossas vidas, atinge nosso humor alegrando nossos dias, que nos faz pensar sobre nossas existências de maneira mais profunda, que nos deixa impacientes, pensativos, lívidos, lacrimejantes e às vezes revoltados; o que ela nos diz, por que ela nos interessaria?

Penso que se nos interessássemos pela arte e por tudo o que ela pode “significar”, provavelmente nossa razão e intuição se fortaleceriam, pois sairíamos de um estado de passividade em relação aos acontecimentos, de um sono profundo que às vezes nos deixa entorpecidos, sem reação contra os absurdos da vida e da história. Sentiríamos a vida de outra forma, com mais amplitude e profundidade. Vivemos no mundo e, na maioria das vezes, não questionamos nem como as coisas são, nem por que são e muito menos para onde vão. Uma vida voltada ao ter e muito pouco ao “ser”.

Ao contrário do que muitos imaginam – e imaginam exatamente porque imaginam sem conhecer o que estão imaginando – o conhecimento e o envolvimento com a arte não transformam seres humanos em românticos babões. Essa visão distorcida é apenas um resquício do romantismo ingênuo que passou por aqui na época de nossos tataravôs.

No século XIX, a elite brasileira importava cultura européia, que chegando aqui se distorcia, aportando num país que acabara de sair do status de colônia e de apenas subserviência. A arte é muito mais abrangente, muito mais elevada do que apenas versos simplórios de amor platônico, que imagens bucólicas de casinhas de fazenda e que retratos de déspotas do poder.

Os movimentos artísticos e a evolução do pensamento humano

A arte é uma alavanca, uma ferramenta imensa de progresso. Uma alavanca que movimenta o peso da velharia, do que está mofado, abrindo portas, inclusive para que a ciência possa entrar num ambiente mais arejado – ou alguém duvida que a liberdade que temos hoje em nosso comportamento, vestimenta, vida sexual, etc. não foi conseqüência do movimento Hyppie das décadas de 60 e 70, que surgiu impulsionado pela música, que é uma forma de expressão e arte?

Falando sobre movimentos que balançam os espíritos e os fazem acordar de eras antigas, podemos pensar a iluminação como arte, pensar que ela também pode ser um instrumento de reflexão, assim como a arquitetura, que em determinados momentos históricos também contribuiu para que a letargia fosse dispersa, para que o mundo respirasse a acordasse em espaços novos, mais confortáveis, mais humanos.

Para falar sobre esse assunto, penso que primeiramente seria interessante entender que os movimentos na história da arte se apresentam com características senoidais; ondas que ora batem em praias de liberdade, ora em praias de escravidão, ora caem na escuridão da inquisição medieval, ora renascem trazendo de volta valores humanos. Ora a arte é engajada, politicamente atuante, ora tímida, alienada, suntuosa por fora e vazia por dentro.

Para dar maior embasamento, gostaria de situar os leitores num momento histórico das artes bastante decisivo, cuja relevância e reflexos sentimos até o momento. Época de grandes rupturas, em que as regras clássicas já não satisfaziam espíritos mais lúcidos. Estou falando dos movimentos que se iniciaram em fins do século XIX e início do século XX na Europa.

Dentre esses movimentos, dois deles se destacam por nos fazer perceber que a liberdade que encontramos na arte é única, e que, mesmo aparentemente opostas em suas visões e sentidos, grandes idéias sempre se complementam. Estou falando dos movimentos impressionista e expressionista.

Em uma rápida análise das características desses dois movimentos artísticos, podemos idealizar ao menos um pouco o que mentes e corações brilhantes desvendaram, desmitificaram e criaram para a posteridade. O que nos legaram e o que podemos fazer com esse legado para transcender por vez, o nosso tempo.

Um de um jeito, outro de outro

O que chamamos de Expressionismo é a arte alemã de fins do Século XIX e início do século XX. Seus dois maiores centros foram os Fauves (feras) na França e o alemão Die Brücke (a ponte). Os dois movimentos iniciaram suas atividades por volta de 1905 e acabaram por determinar a força que impulsionaria o Cubismo na França, por volta de 1908 e a corrente Der Blue Reiter (O cavaleiro azul), na Alemanha de 1911.

A corrente expressionista na arte pictórica surge como resposta de alguns artistas de cunho mais romântico ao movimento impressionista. O Expressionismo é a antítese do Impressionismo. A expressão é um movimento que vai do interior para o exterior; no Expressionismo o artista imprime sua emoção nos objetos, na criação. Já no Impressionismo o artista se vê absorvido pelo mundo externo, os objetos se imprimem em sua consciência e, por conseguinte, em sua obra. O artista se abre para receber as impressões externas e aplicá-las em sua arte.

Para melhor entendimento poderíamos acrescentar que, no Impressionismo, o artista se coloca numa posição passiva, de puro espectador passivo, o que sugere uma atitude mais sensitiva. Por outro lado, o artista expressionista quer deixar a sua marca no mundo, suas emoções transbordam em sua criação e os objetos ficam carregados com a sua vida interior.

A atitude expressionista é volitiva, chega às raias da agressividade, é a imposição do artista sobre o mundo que o rodeia. Interessante notar que mesmo que o artista receba passivamente a realidade (Impressionismo) ou se coloque em choque contra ele através de reações ativas, cujo movimento é centrífugo (Expressionismo), essas duas correntes de pensamento e criação se baseiam na realidade do mundo. São correntes essencialmente realistas. A possibilidade simbolista é excluída.

O sonho e as visões oníricas não são, de maneira alguma, objetos de atenção e discussão, nem do artista que passivamente se deixa envolver pela realidade externa e nem por aqueles que assumem a responsabilidade de influenciar o externo através de suas ações criativas. Nas palavras de ARGAN 1:

“O Expressionismo se põe como antítese do Impressionismo, mas o pressupõe: ambos são movimentos Realistas, que exigem a dedicação total do artista à questão da realidade, mesmo que o primeiro a resolva no plano do conhecimento e o segundo no plano da ação. Excluí-se, porém, a hipótese Simbolista de uma realidade para além dos limites da experiência humana, transcendente, passível apenas de ser vislumbrada no símbolo ou imaginada no sonho. Assim se esboça daí uma arte engajada, que tende a incidir profundamente sobre a situação histórica, e uma arte de evasão, que se considera alheia e superior a história. Somente a primeira (a tendência Expressionista) coloca o problema da relação concreta com a sociedade e, portanto da comunicação; a segunda (a tendência Simbolista) o exclui, coloca-se como hermética ou subordinada à comunicação, ao conhecimento de um código (justamente o símbolo) pertencente a poucos iniciados.”

Estudando mais especificamente a técnica e ideal dos impressionistas, percebemos que existia a busca pela captação do momento fugaz da natureza da luz sobre as formas, sobre os objetos, numa tentativa de recriar a “impressão” causada pelas luzes e reflexos captados pelos seus sentidos visuais. Pintavam diretamente sobre a tela branca, utilizando na maioria das vezes uma paleta de cores puras, através de pinceladas justapostas, criando alterações da cor percebidas como segundos e terceiros cromatismos.

Numa tentativa de fazer um paralelo entre a pintura e uma obra de iluminação impressionistas podemos supor que o iluminador terá que observar as luzes e reflexos da luz na natureza e nos objetos e recriar suas impressões dessa luz e reflexos na tridimensionalidade, através de fontes, equipamentos, filtros etc. artificiais, mas misturando matizes, formas, alterando ângulos de incidência, intensidade, luminosa, etc. Isso, embora seja apenas uma suposição e não uma regra, pode servir como um exemplo aproximado da técnica.

Já os expressionistas, cuja arte se deixa levar pelos reflexos instintivos, buscavam a subjetividade dramática, a explosão dos sentimentos através da deformação das formas, da utilização de cores irreais e agressivas, numa tentativa de dar “forma” aos medos, à solidão, à miséria humana, aos vícios. Em alguns casos, como o de Gauguin e algumas obras de Van Gogh, fazer transbordar a intensidade da natureza selvagem, dos instintos animais e dos povos primitivos. Na iluminação poderíamos, numa tentativa de exprimir esses ideais, usar os recursos artificiais projetando imagens distorcidas, com cores extremamente saturadas e inconvenientes, criando efeitos dramáticos e “misteriosos” através das sombras, etc.

Esses exemplos (e eles são isso mesmo: apenas exemplos e idéias particulares) não podem ser levados ao status de regra, mas servem apenas para criar na mente do leitor imagens aproximadas desses conceitos.

E eu com isso?

Mas o que isso tem a ver com a gente? Que interesse têm os designers de iluminação se os expressionistas botam a boca no trombone, e através de suas criações exprimem suas emoções latentes, seja através do jogo de contraste entre luzes e sombras, cores ousadas, deformando objetos e seres, enfim, colocando pra fora os sentimentos mais profundos, a alma em movimento nas obras?

E o que importa se, por outro lado, os impressionistas, esses cientistas da física e da cognição, esperam horas e horas até que a luz ideal encontre suas telas, misturando tintas “vivas” para enganar os olhos de quem vê o conjunto, pintando várias vezes o mesmo tema, em horas, dias, estações e anos diferentes, apenas para perceber e se impressionar com a luz?

Podem ter certeza que temos muito a ver com isso! Em nossas obras, expressas através das intensidades das luzes, cores, sombras, das deformações sobre espaços e objetos e tudo o mais que a iluminação “fabrica” com suas intervenções, criamos mundos que sensibilizam. Idéias subjetivas que se concretizam.

Sabendo disso, conhecendo os mecanismos, a mecânica, os princípios dessas técnicas, podemos movimentar essas forças emocionais, essas energias inteligentes, esses turbilhões de sentidos. Isso nos torna, também, responsáveis pelas interações com o nosso tempo, com a história presente e futura. Nesse caso, nossa responsabilidade aumenta, pois, podem ter certeza, não existe arte que não seja engajada, que não participe e não sobreviva de alguma crença.

Mesmo aqueles artistas que se dizem totalmente livres, e, de forma alguma engajados, já estão aí engajados numa forma de pensar e de agir. Em algumas épocas iremos encontrar artistas que pensavam dessa forma, e que achavam que sua arte estava acima de qualquer coisa que fosse mundana. Esses artistas contribuíram enormemente para a decadência moral e ética dos povos, por simplesmente pensar que a arte está sempre acima do bem e do mal.

Que negócio é esse de arte engajada?

Geralmente, quando se fala sobre arte engajada, já vem à mente das pessoas a idéia de que “artista engajado” é aquele que levanta a bandeira de uma idéia política e começa a pintar cartazes de propaganda, freqüentar reuniões às escondidas e falar mal do governo, qualquer que seja ele. Não é nada disso! Isso é outro preconceito que nasceu em algum ponto atrás, na história, e faz os mais reticentes fugirem da discussão. Pior ainda, faz gente inteligente se tornar avessa à atividade de pensar seu tempo, sua história e seu futuro.

Mas e daí? – questionarão alguns – o que é que eu posso fazer se meu trabalho como designer de iluminação é apenas criar beleza, conforto; é apenas criar luzes que irão iluminar os palcos, as exposições, as lojas e shoppings? Isso é um engano! Não criamos apenas beleza e conforto, como criamos também consciência estética, de harmonia, de respeito humano, ecológica em seu sentido mais abrangente; criamos e somos mesmo responsáveis por criar e contribuir na criação de espaços e ambientes mais humanos, de beleza estética em teatros, em espaços públicos.

Somos também responsáveis pelos recursos que nos são colocados à disposição, principalmente quando são recursos públicos, pertencentes ao conjunto da sociedade. Somos responsáveis se nos deixarmos corromper por esse dinheiro ou se nos tornarmos os que corrompem.

Na atualidade, onde os artistas da luz encontram o materialismo e o mercantilismo fortemente enraizados no dia a dia, acentuados pela visão do ganho pelo ganho, a pressão para um engajamento maior contra os absurdos da vida é muito vigorosa, mas não impossível de ser dissipada, pois a sutileza pode ser a nossa arma, nossa saída. A arte pode ser a saída. Nosso posicionamento ético é a melhor saída.

Pressões sociais, econômicas, políticas sempre existiram e ainda são muitas. Artistas de verdade sempre foram aqueles que, de alguma forma, quebraram algemas. Essas algemas possuem formas diferenciadas, dependendo da época e dos lugares elas podem ser políticas, religiosas, de preconceito estético, de preconceito racial, de preconceito econômico etc. Artistas de verdade sempre souberam nesses momentos de crise avaliar a importância de seus trabalhos. Dizer “sim” e “não” com a cabeça erguida, com a consciência à frente de seu tempo, com os olhos num futuro mais grandioso.

Impressionistas, como Monet, Renoir, Manet, Pisarro, Courbet; expressionistas, como Van Gogh, Edvard Munch, Gauguin e muitos outros, contribuíram fortemente para que hoje pudéssemos praticar a arte, qualquer arte, de forma mais livre. Esses homens, esses artistas, em suas épocas, tiveram que arrebentar as algemas que os mantinham e às sociedades, presas ao passado, aos preconceitos.

Seria injusto afirmar que os artistas impressionistas, cujas obras estavam mais focadas em problemas visuais e cognitivos, não estavam engajados, não lutavam contra essas pressões. Da mesma forma seria também injusto afirmar que expressionistas estavam mais preocupados com seus próprios problemas emocionais do que com os de suas sociedades.

Eram artistas engajados, que acreditavam que a arte clássica já não bastava para elevar os espíritos humanos, impulsioná-los a um futuro luminoso, mais livre. Lutaram por vezes batalhas terríveis, com perdas financeiras, familiares, passando por humilhações e muitas vezes vilipendiados por mentes contrárias à evolução dos povos.

O artista moderno

O engajamento do artista não está circunscrito apenas ao que ele defende como arte, mas ao que ele defende e acredita como direito à vida, à evolução, à busca de sociedades mais justas, como respeito a si mesmo. O artista contemporâneo, o artista da luz, da arquitetura, da pintura, ou seja, de qualquer arte, não deve pensar em engajamento apenas como questão de princípio ético, mas acima de tudo, e urgentemente, como questão de sobrevivência.

Fica fácil perceber que pela nossa própria insanidade, pela nossa própria ganância, pela nossa própria preguiça e desrespeito à natureza, estamos contribuindo seriamente para a destruição do planeta. Somos uma espécie ameaçada. Nossa maior ameaça é a nossa covardia em pensar que tudo pode ser resolvido sem a nossa participação.

Mas são nesses tempos de crise que as oportunidades de crescimento pessoal e humano são mais abundantes. Os poemas mais belos foram escritos à luz das velas, no silêncio da pobreza. As mais lindas histórias de amor acontecem em momentos de despedida e o heroísmo aflora aos sons ensurdecedores dos bombardeios aéreos.

Artistas de verdade não se deixam intimidar pelas situações, pelos riscos. Impressionistas e expressionistas somos todos nós, basta estar vivo, atuar no mundo, acreditar que o futuro nos pertence e que não está pronto, mas sendo construído diariamente por nossas próprias escolhas.

1 ARGAN, GIULIO C. Arte Moderna. São Paulo: Editora Schwarks Ltda, 2002. p. 229.

Valmir Perez
Lighting Designer
Laboratório de Iluminação
Unicamp
www.iar.unicamp.br/lab/luz
http://valmirperez.blogspot.com/
http://imprensanaprensa.blogspot.com/

Este texto foi originalmente publicado na Revista Lume Arquitetura n. 31 – especial de 5 anos.